terça-feira, 25 de março de 2008

A incrível história do bluesman francês que virou sem-teto na Bahia

Foto: Thiago Fernandes
Paris, 1950. Nasce Jean Eugène Mouchère. Ainda garoto, vivia apanhando dos colegas da escola por ter sangue de negro correndo nas veias. Foi diversas vezes expulso das aulas de canto porque a sua voz agredia os ouvidos da professora. Ficou detido durante 11 meses num reformatório por um crime que jura não ter cometido. Viveu nas ruas. Saltou muros de mansões para comer os restos deixados pelos cães. Caminhou durante noites inteiras para não morrer congelado.
Salvador, 1999. Uma menina de 13 anos morre afogada na Baía de Todos os Santos ao tentar chegar a um barco, junto com outras duas garotas de programa, para atender um grupo de clientes que aguardava seus serviços. Fiquei sabendo do episódio ao chegar ao Correio da Bahia, jornal em que trabalhava na época, e dar uma olhada nas manchetes do dia. Fiz o que tinha que fazer até a noite chegar, mas a história, o que a menina provavelmente sentiu quando a canoa alugada começou a afundar, seus possíveis sonhos e mágoas, sua vida vivida e não vivida, não saíam da minha cabeça. Como era uma sexta-feira, resolvi sair pra esquecer.
O destino foi um bar chamado Friday, no Pelourinho, no qual meu então namorado, Fernando Ferraz, me garantiu que estaria rolando um blues fora do comum. Depois de um tempinho de espera, aparece um cara cinquentão, com a maior cara de acabado, balbuciando umas coisas num português quase incompreensível e com uma voz sufocada que mal dava pra ouvir. Foi aí que a mágica aconteceu. Aquele que ninguém acreditava ser o vocalista da banda se transformou num autêntico bluesman, cantando com as vísceras “I'm goin' to kansas City / Kansas City here I come”, delirando no palco improvisado e arrancando aplausos fervorosos do público que ocupava a meia dúzia de mesas do local.
Paris, 1970. Num batismo de fogo ao som de Eddie Cochran, Jean Eugène torna-se Jean Mitchel. Deixou a escola pra trás, montou várias bandas de blues, fez turnês na Espanha e Itália, teve acesso a discos brasileiros e, pouco tempo depois, decidiu partir rumo ao “país tropical e bonito por natureza” incentivado pela célebre canção de Jorge Ben. Já no Rio de Janeiro, passou uma das fases mais difíceis de sua vida, retratada de forma romanceada no livro “Anjos Negros” que ele escreveu dentro de um presídio e o governo da Bahia, através do Programa Faz Cultura, lançou em 2001.
Salvador, 1990. Ao passar numa noite em frente à Cantina da Lua, no Pelourinho, Jean Mitchel ouve uma mistura de jazz e rock'n'roll que lhe chama a atenção e o faz duvidar de que está mesmo na terra do dendê. Foi ver do que se tratava e, mesmo preocupado com o fato de não cantar há quase duas décadas, juntou-se aos músicos responsáveis pelo som - o guitarrista italiano Gini Zambelli e o baixista venezuelano Keko Vilarroel - e pôs-se a evocar James Brown, Robert Johnson, Little Richard, Chuck Berry, Steve Wonder, Otis Reding, Jerry Lee Lewis, George Gershwing e Wilson Picket. Nascia ali a Jean Mitchel Blues Band, aplaudida de pé, inclusive, no Bourbon Street Music Club (São Paulo), por onde já passaram nomes como Buddy Guy, Ray Charles e B.B. King.
Salvador, 1999. Terminado o show, não resisto ao impulso de parabenizar o bluesman que tanto me impressionou. E foi aí que aconteceu uma daquelas coisas que fazem a gente se sentir, no mínimo, dentro de um filme de Almodóvar. Ele sussurrou, com uma expressão abatida, acinzentada, típica de uma fogueira quando se apaga: "Muito obrigado, mas hoje não foi dos meus melhores dias. Estou com o coração partido, destroçado mesmo. Perdi minha filha de 13 anos ontem. Está na capa de todos os jornais". E seguiu em direção ao balcão do bar, resignado, em busca de alguém que lhe pagasse uma cerveja ou lhe cedesse um cigarro.
Epílogo
Nessa época, Jean Michel morava no porão do Friday (“gentilmente cedido” pela dona do bar), alternava duas únicas mudas de roupa e sobrevivia com os trocados que recebia de couvert. Contava os dias pra chegar sexta-feira, pois era o único em que ele podia cantar e garantir o pão do resto da semana. Pra controlar a ansiedade e fazer o tempo passar mais rápido, pintava quadros abstratos com material doado por alguns artistas plásticos do Pelourinho, praticava meditação e fazia anotações para o seu próximo livro, “Luz nas Trevas”, ainda não publicado.
Com o friday cada vez mais às moscas (a vida cultural do Centro Histórico já dava seus primeiros sinais de decadência), a dona decidiu fechar o estabelecimento, não restando outra opção a Jean além de voltar a morar na rua. Pra piorar a situação, ele engravidou uma mulher viciada em crack, que sumia durante dias e deixava o bebê aos seus cuidados. Foi nesse contexto que Jean acabou preso, desta vez, por furto. Assim que deixou a penintenciária, tentou retomar o trabalho com a banda, mas as portas dos espaços alternativos de Salvador estavam ainda mais inacessíveis. Chegou, no entanto, a fazer uma curta temporada no bar Alphorria (Santo Antonio além do Carmo) no verão de 2006 e a participar de um festival de rock em Conceição do Almeida (cidadezinha com pouco mais de 20 mil habitantes, próxima a Santo Antonio de Jesus) realizado no início do ano passado.
Hoje, segundo informações do guitarrista Gini Zambelli, Jean continua sem-teto e internado em estado grave no hospital das Obras Sociais Irmã Dulce por causa de problemas respiratórios . Enquanto seus companheiros de banda aguardam sua recuperação, prosseguem firmes na batalha por novos lugares pra tocar, sendo que a perspectiva mais concreta é um restaurante a quilo no Comércio. Julgamentos morais (que nada têm a ver com o bom e velho blues) à parte, o que o pessoal do Café Portela, Balcão Botequim e Boomerangue está esperando? O maior e mais sensacional cantor de blues que já passou por estas bandas está aqui, doente por não poder viver da sua arte, enquanto os amantes do gênero (que não são poucos na Bahia) sobrevivem à míngua.

Contato: Gini Zambelli (71-8133-2689 ou ginizambelli@terra.com.br)

Participação da Jean Mitchel Blues Band no Recôncavo Rock Festival

23 comentários:

Franciel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Franciel disse...

Silvana,
história incrível e triste, como a do o livro do arcanjo Gabriel.
Vou colocar lá na maltratada Ingresia um linque pra cá. Pode ser?

P.S Ah, sim. O vídeo com o show só tá abrindo cerca de 20%. O problema é aí ou aqui?

Silvana Malta disse...

Beleza, Francis. Seria uma honra pra mim. Adoro a Ingresia. Tanto que coloquei como link assim que este blog veio ao mundo. Além disso,quando mais gente conhecer essa história, melhor. Beijo grande!

Silvana Malta disse...

Ah, sobre o vídeo, acho que o problema é aí porque outras pessoas me disseram que conseguiram assistir 100%. Aqui em casa, eu não vou nem tentar porque o PC tá uma carroça :D

Anônimo disse...

Sil,
Sempre amei os seus textos, você sabe disso.
Mas não sabia que você também é uma exímia contadora de história. Tenho acompanhado seu blog em silêncio. Leio tudo nele. Mas essa história de Jean Mitchel me comoveu de verdade. Comecei a ler a primeira linha e fiquei embriagada com a emoção que você conseguiu passar através de suas palavras. Quero ler “Anjos Negros”, espero que seja tão inebriante como o seu texto. Olha, viajei com essa sua postagem viu? E para completar o cara canta blues.

Saudade, saudade, saudade... Um beijo no seu coração e parabéns!

Simone Mendonça

Silvana Malta disse...

Poxa, Simone. Que saudade do tempo em que eu tinha você do meu ladinho esquerdo, ouvindo minhas lamúrias e resolvendo minhas pendengas com o outlook. Te adoro tanto que vou fazer um post sobre Bruno e Barrone em sua homenagem : ))))

Silvana Malta disse...

Ops,Marrone!!! Beijo!

Nilson disse...

Silvana, que texto legal, que história louca. Esperemos que as portas de fato se abram para Jean, e que ele fique bom também. Gostei do teu blog. Vou virar freguês. Um abraço.

Anônimo disse...

Silvana,
Cheguei no seu blog através do Ingresia. Fomos "linkados" no mesmo post lá.
A história do bluesman francês é comovente, além de contada de maneira formidável.
Saudações, Victor

Serbão disse...

Silvana, a culpa de eu chegar aqui, ler este texto e me derramar em elogios é de Franciel.

boa história, e muito bem contada. parabéns.

e o Francês é do ramo. aliás, a banda toda no vídeo tem o 'mojo'...

Silvana Malta disse...

Queria agradecer a visita de vocês aqui no meu campo de morango e dizer que tenho boas notícias de Jean Mitchel. Ontem (domingo), fui visitá-lo no hospital. A médica responsável me garantiu que o que ele tem não é grave (hepatite alcóolica e desidratação) e seu quadro tem melhorado a cada dia. Quando souber da volta dele aos palcos, aviso vocês pra gente ir em peso, ok? Beijo grande!

osvaldo disse...

que historia hein? dava um filme. parabens pelo texto silvana.

Fernandamonteiroc disse...

mas como vc escreve bem muié... vc já tinha me contado essa história, mas conseguiu me comover de novo ao lê-la aqui!

graciela natansohn disse...

que flashhhh... a lembrança dele lá no Alforria me parece agora mais um fotograma de um filme que nao vi, do qual fui figurante sem saber. História impressionante, tua narração é belíssima. A vida da gente tem um enredo que se eu acreditasse em deus, diría ser divino. Jamais teria imaginado a relação entre essa menina (lembro do terrível da notícia) e o gringo cantor. Silvana, obrigada por trazer essa história. Vou publicar algo na Lupa, ta?

Anônimo disse...

Poxa! Acabei de ler no "portal do terra" que morreu um Bluesman francês que morava nas ruas aí na Bahia! Me interessei pela história, joguei no google e acabei lendo este belo, porém triste, relato!
Então, se alguém tiver algum material sobre Jean Mitchell que possa compartilhar comigo, deixo o meu e-mail e msn: ivanor_kieling@yahoo.com.br

Agradeço a todos!

cricka disse...

oi silvana!
acabo de abrir uma comunidade em homenagem ao jean!
espero que vc participe nos brindando com suas maravilhosas narrativas!!
um abraço
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=54894397&refresh=1

Flávio José disse...

Oi, Silvana, o que é esta nossa vida, hein? Como alguém pode nascer na França e tornar-se um sem-teto em Salvador?... O que se passava em seu atormentado coração? O que o fez fugir de sua terra natal e refugiar-se no blues? E a dor de ter perdido uma filha-flor daquele jeito?!...Meu Deus... Sou professor de música da UFBA, e navegava em busca de Música Instrumental (Zambelli) quando aportei no seu blog. Parabéns pela narrativa.
Se gostar de música clássica, estou no orkut
http://www.orkut.com.br/Main#Home.aspx?tab=m0
Um abraço amigo!

54FÊNIX disse...

Silvana que história surreal!! O Blues tem mesmo destas coisas...Não consigo abaixar o CD em nenhum dos link´s. Abração e parabéns pelo blog!
Dê uma passadinha no nosso blog:www.avyadores.blogspot.com
Muita paz e harmonia para todos!

Atravessada disse...

Oi! soube da notícia através do face por um amigo e comprtilheo o link pedindo ajuda aos meus amigos baianos pelo espaço para a banda e para a saúde do vocalista.
Gostaria de saber se tem informações mais atualizadas, obrigado

Silvana Malta disse...

Se você ler os posts seguintes a este aqui vai ficar sabendo como tudo acabou. Agradeço sua intenção de ajudar. Pena que, infelizmente, não podemos fazer mais nada além de lamentar. Um abraço.

Ivan disse...

Lindo texto, lindo e triste... como você sabe, só recentemente fiquei sabendo da morte de Jean Mitchell. Fui a muitos shows no Friday, jamais imaginei que a vida dele tinha sido tão sofrida, um verdadeiro roteiro de filme, que você retratou com uma sensibilidade única. Emocionante, emocionado.

Silvana Malta disse...

Emocionada estou eu, Ivanzinho, com suas palavras e sua presença aqui :)

Ivan disse...

:D ;) :*